DT II: Conceito de Tributo

Capítulo II

Tributo

Conceito

No período pretérito, o conceito de tributo mereceu ampla divergência na doutrina especializada, notadamente no concernente ao objeto da equação tributária. Alguns autores viam, com naturalidade, algo que para outros era fruto de um Direito Tributário primitivo ou medieval: a existência de tributos in natura e in labore (exemplos seriam, respectivamente, a requisição de bens e o serviço militar obrigatório).

Discussões como essa perderam importância diante da conceituação legal do tributo. Com efeito, o art.3º do Código Tributário Nacional (Lei nº5.172/1966), em consonância com o art.146, III, a, da CF (que dispõe caber à lei complementar estabelecer a definição de tributos) definiu que tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Passemos ao exame do conceito legal:

  • Toda prestação pecuniária (…)

Tributo é prestação pecuniária, vale dizer, em dinheiro. Afastam-se do conceito de tributo, assim, as prestações in natura ou in labore. Quer-se afirmar, com isso, que a forma direta de extinção da obrigação tributária principal, ou seja, o “pagamento”, será sempre representada pela entrega de dinheiro ao Estado.

Tal assertiva é importante, uma vez que há formas indiretas de extinção da obrigação tributária, como a dação em pagamento (CTN, art.156, XI), que não excepcionam o conceito legal no sentido do qual tributo é prestação pecuniária. A extinção direta da obrigação tributária principal será representada sempre pela entrega de dinheiro (prestação pecuniária) ao Fisco. O fato de a entidade tributante permitir, em lei, a quitação de débitos tributários mediante dação em pagamento não representa ressalva à regra última, nem indica a aceitação de tributo in natura. Em outros termos, a possibilidade legal de se deferir ao contribuinte a faculdade de transferir ao Fisco bens imóveis de valor equivalente ao da prestação tributária, em troca de quitação de seu débito (CTN, art.156, XI), não afasta o caráter pecuniário da prestação, por se tratar a dação em pagamento de forma indireta de extinção da obrigação fiscal, ao lado de tantas outras arroladas no art.156 do CTN (transação, compensação, remissão, prescrição, decadência).

  • (…) compulsória (…)

A obrigação tributária tem natureza de obrigação ex lege, proveniente do poder de império estatal, para cuja formação não concorre a vontade do obrigado. As fontes da obrigação tributária são a lei (fonte formal) e o fato gerador (fonte material).

As prestações contratuais afastam-se do conceito legal de tributo, já que a obrigatoriedade das mesmas advém do contrato, para cujo perfazimento concorreu manifestação de vontade das partes contratantes (obrigação ex voluntate).

  • (…) em moeda (…)

Dizer (como diz) o CTN que tributo é uma prestação em moeda consiste meramente em ratificar seu caráter pecuniário, explicitado na primeira parte do conceito legal. “Prestação pecuniária em moeda” consiste, assim, em expressão pleonástica que revela ênfase no caráter monetário do tributo.

  • (…) ou cujo valor nela se possa exprimir (…)

A rigor, quase todos os bens podem merecer avaliação em moeda, o mesmo ocorrendo com o trabalho humano. Por isso, se interpretada ao pé da letra a expressão “ou cujo valor nela se possa exprimir”, o conceito de tributo encerraria contradição ao mencionar “prestação pecuniária em moeda”, para depois permitir tributos in natura e in labore. Melhor será, portanto, considerar-se o permissivo em questão como alusivo à indexação do tributo, quando fixo, em lei, de forma a preservar o valor da prestação tributária em período inflacionário. Assim, nada impede que o tributo cuja prestação independa de cálculo (tributo fixo) tenha o seu valor retratado em algum índice indexador (UFIR, UNIF, UFERJ etc.) estabelecido na lei.

Não prevalecendo tal interpretação, o caso é de se reputar juridicamente irrelevante a aludida expressão, como aliás o fazem juristas ilustres.

  • (…) que não constitua sanção de ato ilícito (…)

Tributo e multa não se confundem. A expressão examinada tem por objetivo excluir a penalidade do conceito do art.3º do Código Tributário Nacional.

A sanção tem dúplice caráter, prestando-se a inflingir um sacrifício ao transgressor da ordem jurídica (caráter repressivo), à guisa de medida exemplar e desestimuladora de novos deslizes (caráter preventivo).

O tributo não tem caráter punitivo, embora seja recolhido com sacrifício pelos cidadãos. Tem ele sua razão de ser na repartição das despesas públicas entre os membros da coletividade, sujeita e beneficiada pelas atividades estatais.

O tributo é exigido em maior escala dos cidadãos detentores de maior capacidade econômica, que podem dispensar certas prestações estatais (saúde, assistência, previdência, educação) buscando a satisfação de suas necessidades na iniciativa privada, exatamente para que o Poder Público possa custear suas atividades em benefício daqueles que só contam com a tutela oficial. Pode-se considerar o tributo, assim, em tese, um instrumento de redistribuição de riqueza.

Também se atribui ao tributo a característica de “preço da liberdade”, pois permite que o cidadão atue no espaço público, com a proteção estatal de sua propriedade e desenvolvendo livremente atividades econômicas, tendo, em contrapartida, de carrear ao Estado determinada fração de sua riqueza.

Como se vê, distinguem-se tributo e multa, embora tenham em comum o fato de serem prestações pecuniárias compulsórias – espécies de receita pública derivada.

É importante frisar que o tributo pode validamente incidir sobre situações ou atividades ilícitas, sem que se confunda, mesmo nesses casos, com sanção de ato ilícito. Para compreender isso, convém distiguir – seguindo linha doutrinária autorizada – a hipótese de incidência do tributo, isto é, a descrição legal do fato gerador da obrigação tributária (fato gerador em abstrato), do fato imponível, ou seja, da concretização do fato gerador (fato gerador em concreto).

O ilícito não pode estar presente na hipótese de incidência do tributo, pois, nesse caso, estar-se-á diante de sanção. Noutros termos, ao tratar da situação hipotética que, uma vez ocorrida, dará nascimento à obrigação de pagar o tributo (fato gerador em abstrato), a lei não pode prever atos, fatos ou situações ilícitas, considerando que a obrigação tributária não possui caráter punitivo. No entanto, nada impede a incidência do tributo sobre fatos que, embora hipoteticamente lícitos, concretizem eventual ilicitude quando ocorridos.

Exemplificando, imagine-se que determinada lei municipal referente ao ISS (Imposto Sobre Serviços) arrole a prestação de serviços profissionais de advogado na hipótese de incidência do tributo (situação lícita, em tese). Figure-se Adolpho, que presta serviços profissionais de advogado sem estar devidamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, ou seja, sem estar habilitado a atuar no seio forense. Caberia ao mesmo eximir-se da tributação, por estar advogando clandestinamente, ao argumento de que tributo não é sanção de ato ilícito?

A resposta, evidentemente, é negativa. O tributo, no caso, não incide a título de punição, mas em decorrência da concretização de uma situação lícita (prestar serviços de advogado), que configura o fato gerador da obrigação tributária relativa ao ISS. Se o fato imponível revestiu-se de ilicitude, tal circunstância, ao menos do ponto de vista fiscal, mostra-se irrelevante, não sendo outra a orientação do CTN, por seu art.118, inciso I, que estabelece:

Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:

I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

(…)

A incidência de imposto de renda sobre o acréscimo patrimonial decorrente de atividades criminosas (exploração de tráfico de entorpecentes, concussão, desvio de dinheiro público etc.) já não causa espécie aos que prezam a fiel observância ao princípio constitucional da isonomia (CF, arts.5º, caput, e 150, II). Com efeito, não seria razoável exonerar da tributação os ganhos “fáceis”, auferidos pelos desonestos, às custas de um sacrifício tributário imposto aos cidadãos probos.

Mas, nem sempre foi assim. Na concepção ética do passado, não se admitia a tributação da renda proveniente de atividades delituosas, por se tratar de “produto do crime”, do qual o Estado não se poderia beneficiar. Atualmente, mediante raciocínio lógico, afigura-se absurdo e atentatório ao princípio da capacidade contributiva (CF, art.145, §1º) afastar-se a tributação de atividades com significado econômico relevante pelo simples fato de revelarem ilícitos condenáveis.

A tributação de atividades ilícitas (ou de ganhos decorrentes de tais atividades) costuma ser historicamente justificada por meio do princípio conhecido como “non olet”. Na verdade, cuida-se de brocardo cunhado no Império Romano por Vespasiano, ao defender a tributação dos prósperos concessionários dos toaletes públicos, que ganhavam duplamente ao cobrar dos cidadãos pelo uso das latrinas e vender as fezes (como adubo) e a urina (utilizada no processo de curtição de peles de animais) recolhidas. Dizem os historiadores que Tito, filho de Vespasiano, embora inicialmente contrário à nova tributação (enojado com o “tributo sobre as cloacas”), teria mudado de opinião quando o pai, passando-lhe uma moeda debaixo do nariz, fê-lo ver que “pecunia non olet”, ou seja, o dinheiro não cheira, não fede, ainda que eventualmente sua origem não seja das mais puras.

Alguns autores afirmam que a tributação progressiva da propriedade que não cumpre sua função social, através do IPTU (CF, arts.156, §1º, c/c 182, §4º, inciso II), configura exceção à regra do art.3º do CTN, segundo a qual tributo não é sanção de ato ilícito.

Não vemos assim. O fato gerador em abstrato (hipótese de incidência) do IPTU é a propriedade, posse ou domínio útil do imóvel localizado em zona urbana municipal (CTN, art.32), e tal situação, em tese, é lícita. Assim, mesmo a (mal) chamada “tributação-sanção” não revela, propriamente, tributação do ilícito. Trata a espécie de “tributação proibitiva” (extrafiscal), utilizada como instrumento jurídico pelo Estado para desestimular ato ou fato que a ordem jurídica tolera. Tanto é assim que, revelando-se ineficaz a tributação progressiva, a medida mais grave a ser adotada pelos municípios, em relação a tais propriedades, há de ser a desapropriação, que também não se confunde com sanção (distinguindo-se do confisco puro e simples), ainda que a indenização, no caso, seja efetuada mediante pagamento em títulos da dívida pública (CF, art.182, §4º, inciso III).

Há outros exemplos de tributação desestimuladora (extrafiscal), como a do IPI sobre cigarros e outros produtos nocivos à saúde, merecedores de alíquotas proibitivas, sem que a industrialização dos mesmos seja considerada ilícita.

  • (…) instituída em lei (…)

Ao conceituar a prestação tributária, o legislador optou por precisar o veículo instituidor adequado, atrelando-a à lei em sentido estrito (lei formal). Trata-se de consequência da adoção, em nosso Direito, do princípio da legalidade na tributação (CF, art.150, inciso I, e CTN, art.97), no sentido do qual só a lei pode instituir o tributo, definindo sua hipótese de incidência e todos os aspectos nucleares da relação obrigacional correspondente (sujeição passiva, base de cálculo, alíquota, infrações etc.).

O tema – legalidade – será objeto de análise detida à frente.

  • (…) cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

A administração tributária tem todos os seus atos pautados na lei, restando carente de liberdade para apreciar a conveniência e a oportunidade de agir.

A lei tributária, portanto, deve precisar os pressupostos fáticos que ensejam a prática dos atos administrativos fiscais, bem como o conteúdo destes, certo que qualquer lacuna deve ser preenchida mediante a edição de ato normativo abstrato, de cunho impessoal.

Decorrência da ausência de discricionariedade na conduta da Adminis­tração tributária é a plena possibilidade de apreciação, pelo Judiciário, dos requisitos de validade de seus atos – competência, finalidade, forma, motivo e objeto –, estritamente vinculados que são. Na esfera tributária, não há falar, portanto, em mérito administrativo, conhecida barreira ao controle do ato administrativo pelo Judiciário.

A tradicional doutrina administrativista sempre considerou violadora do princípio da separação de poderes a decisão judicial que substitui pelos seus os critérios de conveniência e oportunidade utilizados licitamente pela administração em relação às atividades discricionárias. No Direito Tributário, como visto, de tal violação não se há de cogitar.

 

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