A privatização da administração tributária na colônia e seu reflexo nos dias atuais.

Pouca gente sabe que nos primórdios da tributação desenvolvida em solo pátrio, as atividades de arrecadação, fiscalização e cobrança tributárias estiveram a cargo de pessoas físicas, os chamados contratadores, que chegaram a formar grupos mercantis poderosos. A privatização da administração tributária vigorou por muito tempo no Brasil-colônia e deixou marcas ainda hoje visíveis na atividade fiscal de nosso Estado.

Deixo aqui, ao leitor amigo, um trecho de minha dissertação de mestrado em que traço um breve panorama crítico sobre o tema. Nossa história ajuda a entender onde estamos atualmente…

Boa leitura!

Com a crise política, o sistema fazendário do Antigo Regime se esfacela, à medida que surge um novo estado. O mercado ganha vontade própria e a Coroa passa desempenhar funções novas, que abrigam a manutenção de um exército e de um modelo administrativo baseado em fiscalização efetiva e permanente, o fomento a atividades econômicas e a busca pela prosperidade.[1]

As novas atribuições impõem uma ampla fonte de receitas e a necessidade de reorganização dos tributos, a par do alargamento da base de materialidades sobre as quais estes irão recair e da definição de um sistema de arrecadação eficiente. Incapaz de realizar tais reformas com celeridade, a Coroa Portuguesa acaba por delegar a capacidade tributária ativa a particulares, contratados por prazos relativamente longos, chamados contratadores de rendas, lançadores ou financistas, cujo interesse passa a ser o de arrecadar o máximo possível para lucrar sobre o que terminam por entregar à Coroa.[2]

Alternativa a esse sistema era o encabeçamento, pelo qual o rei e a vila (ou câmara) celebravam um pacto e definiam uma quantia fixa a ser paga pela terra. A partir daí, cada terra repartia o montante a ser destinado à Coroa entre os seus habitantes, mediante critérios próprios, relativamente aos quais o rei era indiferente.

Negociações diretas entre representantes do rei e o povo não eram incomuns.[3]

Na verdade, diante dos freqüentes abusos praticados pelos contratadores, o rei passa a ser vinculado à justiça. Tais contratadores, que levavam vida de fartura, cobravam sem controle e impunham sevícias a devedores miúdos, que não tinham a quem recorrer. A figura do rei, assim, é separada da de seus delegatários, não sendo ele o responsável pela miséria do povo. Ao revés, passa ele a ser instância da justiça, que pode coibir os abusos cometidos pelos contratadores.

Na instalação do regime português no Brasil, as típicas tarefas fazendárias eram conferidas aos donatários, que possuíam rendas sobre as terras e atribuições de fiscalização. Disso resultava que das rendas da colônia, 90% ficavam em poder de particulares e 10% eram vertidos à Coroa.

Nessa época, os títulos de cobrança ensejavam a divisão das receitas da Coroa, que se classificavam em: próprios; monopólios (ou estancos); impostos; rendas do padroado; e rendas de condenações.

As Ordenações Filipinas definiam os próprios como os veeiros e as minas de ouro, ou seja, os frutos patrimoniais do rei, em geral. A figura do quinto – sendo o quinto do ouro o tributo mais conhecido do período colonial – nada mais era do que a quinta parte da lavra das minas, devida por quem houvesse recebido a concessão para a respectiva exploração.[4]  Ditos próprios evoluíram até os tempos atuais e, no plano da atual classificação adotada no direito financeiro brasileiro, podem ser equiparados às receitas públicas originárias patrimoniais, que, como o nome indica, decorrem da exploração do próprio patrimônio do Estado.

Especificamente sobre o quinto do ouro, o modo de arrecadação era peculiar. A fundição do ouro em pó, de forma a transformá-lo em barras, só podia ser realizada em casas reais, nas quais desde logo se retirava a quinta parte do rei. Assim, a circulação do ouro em barras representava a circulação do ouro quintado, ou seja, do ouro tributado.[5] Sistema semelhante, em tempos modernos, seria o do selo de IPI, inserido em embalagens de produtos como cigarros e bebidas alcoólicas para fins de controle quantitativo.

Principal fonte de arrecadação, o quinto do ouro perdeu terreno com a diminuição da produção aurífera, ao mesmo tempo em que as necessidade de arrecadação da Coroa aumentavam. Ganha espaço a figura dos impostos.

Os principais impostos eram a dízima do produto da terra, dos mares e dos animais; a dízima das mercadorias entradas ou saídas do território nacional para o estrangeiro, também chamadas de portagem (na saída); a sisa, que equivalia a 10% do preço das vendas e trocas; e a décima, correspondente a uma parte do rendimento de cada súdito, que introduziu o imposto de renda no Brasil.

Figura distinta dos próprios e dos impostos era o exclusivo comercial (estanco ou monopólio), empregado principalmente no regime de exploração de diamantes, mas também adotado nas atividades relacionadas com tráfico de escravos, pesca de baleias e tabaco. Nesse sistema de monopólios, arrendava-se por contrato a área destinada à exploração e cobrava-se determinada soma em dinheiro por trabalhador ou escravo empregado na atividade. No distrito diamantino, por exemplo, o regime se caracterizava pelo rigor e era proibida a entrada de elementos que, suspeitos de artimanhas, pudessem causar perturbação ao bom andamento dos negócios (como advogados e frades…).

Outros exemplos de formas de concessões de fontes de receita da Coroa a particulares eram as chamadas companhias privilegiadas de comércio, que tinham autorização para explorar atividades estancadas em certas regiões – repassando certas somas à metrópole – e que ostentavam prerrogativas variadas, como responsabilidade limitada ao capital, ação militar, faculdade de expedir deveres de conduta aos particulares, autonomia jurisdicional e legal, entre outras.

Por fim, apareciam as rendas provenientes das condenações, as quais, ainda que não previsíveis, possuíam relevo na classificação das receitas da época. Dentre as penas estipuladas na legislação criminal de Portugal, aplicável à colônia, figuravam a expropriação confiscatória, também conhecida como perdimento em favor da Coroa, penalidade incorporada pela lei brasileira e ainda hoje observada em casos de graves infrações ao regulamento aduaneiro. Também destacavam-se as dízimas da chancelaria, que equivalia a 10% do valor da apelação desprovida, sem prejuízo das custas e multas. No regime dos juizados especiais, implantado no Brasil através das Leis nº 9.099 e 10.259, há previsão similar, em que certos ônus são atribuídos ao recorrente vencido. O Novo Código de Processo Civil, em certa medida, também adotou essa sistemática.

De um modo geral, a atividade de lançamento de tributos era privatizada no Brasil e os historiadores indicam que, “entre o Estado e o particular, na exploração de tributos e dos monopólios, se fixa, densa e avidamente, impiedosa e insaciável, uma camada de exploradores alimentada pela Coroa”.[6]

Originário do século XVI, o sistema de contratos das rendas e direitos reais configurava importante fonte de recursos para os cofres da Coroa Imperial Portuguesa. Tais pactos bilaterais foram inicialmente firmados entre o rei e “mascates e traficantes”, que consideravam apenas o negócio e “não tinham contemplação nem tolerância” com os contribuintes. Ainda assim, “não era pouco freqüente o caso de contratadores insolváveis incapazes de pagar o preço do contrato”, já que “no afã de arrebatá-los, pois constituíam em princípio um dos melhores negócios da época, os licitantes iam frequentemente além do que o contrato podia render em tributos arrecadados; e não se arruinavam, mas deixava a fazenda de receber seus créditos”. [7]

Buscando maior segurança no pagamentos dos valores dos contratos, a Coroa passou a negociar com mercadores de grosso trato, que possuíam capital de giro e garantias para celebrar contratos que previam prazos e quantias aprioristicamente estabelecidos, além de direitos e deveres recíprocos.

Eram considerados “mercadores de grosso trato” exatamente por que, tanto no Brasil, quanto em Portugal, arrematavam contratos, emprestavam a juros, negociavam em sal, tabaco, escravos, ouro, diamantes e toda a espécie de mercadoria, interferindo assim na vida econômico-social da metrópole e dos seus domínios ultramarinos.[8] Gozavam de prestígio social, econômico e político, recebiam mercês e sesmarias na colônia e muitos chegaram a ser habilitados na Ordem de Cristo – a mais importante Ordem Militar do Império Português.[9]

Valendo-se de redes clientelares, compadrios, casamentos e afins, tais contratadores, verdadeiros agentes da Coroa, transformaram-se, em algumas capitanias, no grupo dominante, a ponto de serem procurados pelos governadores para a formação de alianças.

O sucesso do sistema de contratações deveu-se à formação de grupos mercantis poderosos formados pelos principais homens de negócios do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, constituídos com o objetivo de arrematar os principais contratos do Atlântico Sul. O volume dos negócios por eles celebrados demonstrava que os contratadores não eram meros consignatários, tampouco se situavam em plano secundário na economia da colônia.[10]

Todavia, para um Estado incapaz de desempenhas suas tarefas mínimas, a delegação de atividades fazendárias a particulares, que exercerem o poder recebido com o exclusivo propósito de buscar aumento patrimonial, acabou por dificultar a formação de uma esfera pública democrática e não exclusivista,[11] algo que, em certos aspectos atuais da administração fiscal brasileira, ainda ressoa.

Trecho da dissertação de mestrado (UFF - Universidade Federal Fluminense), de minha autoria (Mauro Luís Rocha Lopes), ainda não publicada, sob o título:

A DECLARAÇÃO DE DÉBITO E O DIREITO À IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA PREVIAMENTE À CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO -  Uma visão crítica da legislação brasileira em vigor e da jurisprudência dominante.

 

[1] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 248.

[2] Sheila de Castro FARIA, professora titular de História da Universidade Federal Fluminense e autora de “O Brasil colonial: economia e diversidade” (São Paulo: Editora Moderna, 2002) aprofunda o tema: “Esses contratos foram um importante ponto de encontro nas relações entre metrópole e colônia. O sistema implantado era relativamente simples e facilitava a administração portuguesa: havia uma série de taxas, impostos e negócios exclusivos de algum produto (como a exploração do sal e do pau-brasil) que nunca eram cobrados ou explorados diretamente pelos funcionários ou agentes da metrópole. Os contratos eram leiloados, ganhando o indivíduo ou sociedade que desse maior lance. O vencedor pagava a quantia e tinha o direito de, no período estipulado (média de três anos), explorar as cobranças. Dessa forma a coroa se desonerava dos gastos de manter um exército de funcionários para cobranças, e do risco de corrupção inerente a essa prática. Além disso, leiloando-as a particulares, recebia antecipadamente e podia planejar melhor suas finanças. Por sua vez, o arrematante (ou contratador) ficava com todos os riscos, pois poderia ter ou não sucesso na tarefa. Se a arrecadação fosse menor do que o que havia desembolsado, tinha que arcar com o prejuízo. Mas seus lucros deviam ser significativos, pois um mesmo arrematante concorria repetidas vezes nos leilões. Pode-se dizer, em linguagem atual, que Portugal “terceirizou” a cobrança dos impostos” (A colônia é mais embaixo. In Revista de História.com.br. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/a-colonia-e-mais-embaixo>. Acesso em: 08 jan. 2015).

[3] LOPES, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 247/248.

[4] Dispunham as Ordenações Reais sobre o quinto do ouro: Ordenações e Leys do Reyno de Portugal, confirmadas e estabelecidas pelo Senhor Rey D. João IV e impressas por mandado do muy alto e poderoso Rey D. Pedro II, em Lisboa, no ano de 1695. Livro Segundo (“Das Minas & Metaes”) – Título XXXIV § 4º. E de todos os Metaes que se tirarem, depois de fundidos, & apurados, nos pagarâõ o quinto em salvo de todos os custos. E sendo as veas tão fracas, que não sofrão pagar o dito direito, nos requererâõ, para provermos como for nosso serviço. §5º. E todos os Metaes que às partes ficarem depois de pagos os ditos direitos, sendo primeiro marcados, poderâõ vender a quem quiserem, não sendo fôra do Reyno, fazendo-o primeiro saber aos Oficiais que para isso ouver, para fazerem assentos das vendas, no livro que hão de ter, em que os vendedores assinarâõ. E o que vender em dobrei, & o comprador anoveada, duos terços para nossa Fazenda, & outro para quem o descubrir, & acusar, & serâõ presos até mercê nossa. E quem os vender antes de serem marcados, ou em madre antes de fundidos, ou para fóra do Reyno, perderá a fazenda, & será degredado dez anhos para o Brasil. O comentário é de Ricardo Arnaldo Malheiros FIÚZA: “Estava aí, assim, regulado, nas próprias Ordenações do Reino e para o próprio território reinol o notório tributo do Quinto (…). Nas Minas Gerais, com a descoberta do ouro no fim do Século XVII – juntamente com os possíveis degredados referidos nas Ordenações – chegou o próprio Quinto, que começou a ser cobrado no ano de 1700, no governo de Arthur de Sá e Menezes, Governador da Capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas. A arrecadação dos quintos do ouro iniciada aí, iria desenvolver-se através de diversos processos (…), por todo o Século XVIII, alimentando durante os primeiros 50 anos o luxo desabrido do longo reinado do espaventoso e beato D. João V, que mandou e desmandou sobre Portugal de 1689 a 1750. (…) Na segunda parte do século XVIII, o produto dos quintos, somado ao de outros tributos (como o subsídio voluntário), pelo menos teria finalidade mais digna, qual seja, a de ajudar o poderoso Pombal na reconstrução de Lisboa, após o célebre terremoto de 1755” (Os quintos do ouro: resumo histórico-jurídico de um tributo que marcou as Minas Gerais. In Garantias dos contribuintes no sistema tributário / Organizadores Daniel Freire e Almeida, Fabio Luiz Gomes, João Ricardo Catarino. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 560-561).

[5] “Com a criação das casas de fundição proliferaram o contrabando e a falsificação. Os extravios do ouro generalizaram-se escandalosamente, tornando-se clássico o processo das jóias toscas: ourives (…) faziam joias de ouro sem liga, pouco trabalhadas, grandes e desajeitadas, que, certamente, não enfeitavam os dedos, os pulsos e os colos das damas, mas que carregavam o ouro para fora de Minas. O próprio autor de Carta a Rubem Braga nos fala dos frades de aparência piedosa e inocente, que escondiam sob suas vestes sacras saquinhos de ouro em pó. Paralelamente, surgiram as fundições clandestinas e as barras cunhadas falsamente por peritos falsificadores, partiam para o Rio e para a Bahia em busca do mar. E aí parece que o feitiço virara contra o feiticeiro, já que a existência, entre as montanhas de Minas, desses expertos em cunhagem falsa podia muito bem ser devida às próprias Ordenações do Reino, que, em seu Livro Quinto, Título LII, parágrafo 2o, prescrevia a pena de degredo para sempre para o Brasil àqueles que falsificassem qualquer sinal público.” (FIÚZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. Os quintos do ouro: resumo histórico-jurídico de um tributo que marcou as Minas Gerais. In Garantias dos contribuintes no sistema tributário / Organizadores Daniel Freire e Almeida, Fabio Luiz Gomes, João Ricardo Catarino. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 567).

[6] LOPES, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 252.

[7] “Tal sistema (arrecadação dos tributos por contratos) constituiu uma das mais maléficas práticas do governo colonial. Justificava-se aliás, porque estava nos métodos fiscais de todas as nações contemporâneas, e tinha atrás de si uma tradição de séculos desde o império Romano. Mas esta respeitável vetustez do sistema não era consolo para a população colonial, que sofreu muito dele.” (PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 20ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1980, pp. 319-320).

[8] RAU, Virgínia. Um mercador luso-brasileiro do século XVIII. In: GARCIA, José Manuel (Org.) Estudos sobre história econômica e social do Antigo Regime. Lisboa: Ed. Presença, 1984, p. 19.

[9] PESAVENTO, Fábio e GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Contratos e contratadores do atlântico sul na segunda metade dos setecentos. In história, histórias (Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UnB). Brasília, vol. 1, n. 1, 2013, p. 75.

[10] PESAVENTO, Fábio e GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Contratos e contratadores do atlântico sul na segunda metade dos setecentos. In história, histórias (Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UnB). Brasília, vol. 1, n. 1, 2013, p. 73.

[11] LOPES, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 253.

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